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O DESENHO CONSTITUCIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA FRACASSOU?

A Constituição Federal de 1988 é um paradigma para a área de segurança pública. Foi a primeira constituição brasileira a tratar do tema de forma concentrada e individualizada. O Constituinte de 1988 considerou o direito à segurança como um direito individual fundamental (caput do art. 5º) e como um direito social (caput do art. 6º), além de ter dedicado, de maneira inédita, um capítulo exclusivo à segurança pública, concentrando o assunto no art. 144 (Capítulo III, do Título V - Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas). De maneira geral, o art. 144 estabelece os órgãos responsáveis pela segurança pública e suas respectivas competências, além de definir que ela é “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos” e que “é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”.


Nas constituições anteriores, o direito individual à segurança dos cidadãos era reconhecido, mas a palavra segurança pública sequer era mencionada. O tema era tratado de forma lacônica, esparsa ao longo do texto e sem clareza em relação aos órgãos de atuação. Além disso, havia intensa simbiose entre segurança pública e segurança externa, gerando inúmeras confusões não só em relação à forma de atuação dos agentes, mas também em relação às competências de cada instituição.


Mas, apesar de a Constituição de 1988 ser um paradigma no tema, fica a pergunta: o desenho por ela estabelecido para a segurança pública funcionou ou fracassou? Infelizmente fracassou! A segurança pública não vai bem e todos sabem disso.


Os números falam por si: de acordo com o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, mais de 47 mil mortes violentas intencionais foram registradas no Brasil em 2019. Apenas para se ter uma ideia comparativa dos horrores da situação brasileira, os sete maiores conflitos armados do mundo em curso, aqui incluídas as guerras da Síria, do Iêmen, da Líbia e do Afeganistão, mataram pouco mais de 42 mil pessoas no ano de 2019, de acordo com o relatório Trends in Armed Conflicts 1946-2019, uma publicação respeitada na Europa. O sistema prisional também reflete a triste realidade. No ano de 2019, havia mais de 755 mil pessoas encarceradas, um crescimento de 224% em relação ao ano 2000, quando havia em torno de 232 mil presos. Tudo isso sem contar os inúmeros casos de estupros, feminicídios, roubos e furtos que ocorrem todos os dias em nosso país, criando uma sociedade refém do medo.


E quais são as razões desse fracasso? Muitos fatores podem ser apontados, mas há dois que podem ser considerados decisivos: o modelo estadual de polícia adotado e a ausência de previsão para investimento obrigatório na área de segurança pública.


De acordo com o seu art. 144 da Constituição, cada Estado da federação e o Distrito Federal contam com duas polícias de ciclo incompleto: uma militar, com competência de polícia ostensiva e preservação de ordem pública, e uma civil, com funções de polícia judiciária e apuração de infrações penais. A quebra desse ciclo de polícia, ou seja, a existência de uma corporação que previne e reprime o delito e de uma outra corporação que investiga, tem se mostrado ineficaz no combate à criminalidade. Além da quebra no fluxo de informações que ocorre, não podemos esquecer que as polícias militares e as polícias civis vivem em constante conflito, com divergências que vão de uma diferença fundamental em relação à natureza estatutária (militar x civil) até a disputa de recursos e busca por protagonismo junto aos Governadores.


Um dos resultados desse modelo é o baixo índice de elucidação de delitos no Brasil. De acordo com o estudo “Onde Mora a Impunidade?”, publicado pelo Instituto Sou da Paz em 2019, há unidades da federação, como o Pará, em que os índices de elucidação de homicídios giram em torno de apenas 10%. Um número assustador e que parece chancelar a máxima de que o crime compensa no Brasil. Em nenhum país desenvolvido na Europa ou América do Norte há quebra do ciclo de polícia; nesses países há o ciclo completo, ou seja, a corporação policial que reprime o delito é a mesma que investiga. O modelo de polícia estadual escolhido pelo constituinte de 1988, portanto, não está à altura de garantir a segurança que a sociedade brasileira precisa.


Outra falha da Constituição de 1988 foi a ausência de previsão para investimento obrigatório na área de segurança pública. Sem investimentos obrigatórios, o tema fica refém de políticas de Governo e não consegue ser alçada a uma política de Estado. Ou seja, se o Chefe do Poder Executivo (seja ele federal, estadual ou municipal) tem afinidade com a área de segurança pública, costuma haver investimentos adequados na área, se não tem afinidade, os investimentos costumam ser precários.


Nas áreas de saúde e de educação, o constituinte de 88 garantiu investimentos obrigatórios por parte dos entes federativos. O art. 198, por exemplo, estabelece que “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos” e, em seguida, menciona como esses percentuais são calculados. No mesmo sentido, o art. 212 estabelece que “A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino.” O art. 144, ao falar de segurança pública, por sua vez, se calou.


Não há dúvidas, portanto, que o desenho constitucional de segurança pública fracassou. Mas é sempre bom lembrar que a nossa Constituição Cidadã não é imutável. Não há impedimento jurídico para que o modelo de polícia estadual seja alterado, assim como não há impedimento jurídico para previsão de investimentos obrigatórios para a área. Somente avançando nesses dois pontos é que poderemos vislumbrar uma segurança pública eficiente e à altura das necessidades da sociedade brasileira.



Eduardo Granzotto - Membro do Observatório de Segurança Pública e Cidadania da América do Sul. Professor do IDP. Consultor Legislativo de Segurança Pública e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com pós graduação em Ciências Criminais e Processo Legislativo. Diplomado pela Escola Superior de Guerra (ESG) no Curso Superior de Política e Estratégia. Mestre em Paz e Segurança Internacional pela King’s College London, na Inglaterra

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